A cabana das mulheres
Sobre a coragem de enterrar os vivos e encontrar refúgio nos pequenos gestos
Há algo de sagrado no gesto simples de prender um cobertor na maçaneta, esticar as pontas na cama, segurar com firmeza o tecido na cadeira. Esse ritual mundano de improvisar um teto com lençóis e colchões é, na verdade, a criação de um templo — um espaço onde o real se suspende e o mundo lá fora não pode entrar. No centro da cabana, os corpos pequenos dos meus filhos e o meu, que já conhece o peso de tantos fardos. Somos três, amontoados sob a mesma sombra de tecido, embalados por um pacto silencioso: aqui dentro, nada nos toca.
Essa é a magia das cabanas feitas pelas mães — o tipo de magia que se constrói com a urgência de quem precisa proteger. Não há madeira, não há cimento, mas há a crença inabalável de que as dores ficam do lado de fora. O grito ensurdecedor dos tratamentos de silêncio, as palavras cortadas ao meio, os olhares que condenam sem julgamento justo, tudo isso é barrado pelo improviso da minha arquitetura. Ali, naquela penumbra suave, ninguém se atreve a atravessar.
Penso nos dias em que carreguei vidas que não eram minhas, memórias de mulheres cujos olhos projetavam um pedido de socorro que ninguém mais via. Eu as salvei, ou tentei, usando apenas palavras e presença. Como quando impedi que uma moça em surto psicótico tirasse a própria vida ou a vida de outras pessoas. Fui mulher e fui ponte, e ainda assim, o mundo me ofereceu o castigo das frustrações alheias. Penso no dia em que protegi meu bebê de mãos irresponsáveis e rostos desmascarados, em plena pandemia, e fui atacada como quem comete um crime. Penso em todas as inversões, em todas as vezes que me tiraram o chão, usando abusos patrimoniais, emocionais — agressões que não deixam marcas visíveis, mas constroem prisões concretas. O mundo está em prontidão para roubar o destino das mulheres que não fazem barulho. Não há justiça fora da cabana.
A cada fim de ano, quando os shoppings lotam de pressa e de sacolas, quando as famílias se aglomeram sob luzes artificiais, desejo silenciosamente que toda mulher tenha um canto para montar sua própria cabana. Que possam sentir, mesmo por um instante, a proteção de um espaço que as vê, as acolhe, as resguarda do frio e da solidão. Que nenhuma mulher seja refém do cansaço, das relações tóxicas, da luta pela sobrevivência, das mãos que tentam segurá-las pela garganta.
Com o tempo, as meninas crescem. Elas descobrem que os monstros não moram debaixo da cama, nem saem dos armários entreabertos. Elas aprendem que a maior assombração veste pele humana, ocupa cadeiras de jantar, divide espaços em casas bem arrumadas e famílias aparentemente felizes. O verdadeiro susto está na violência de gente viva. E então, aprendem a lição mais dura: enterrar os vivos é tão necessário quanto enterrar os mortos. Porque há vivos que nos apagam pouco a pouco, que roubam a força da voz, que minam os desejos mais simples, como dançar no meio da sala ou rir sem razão.
Aqui, debaixo da cabana, com meus filhos respirando perto, eu descanso. Respiro junto a eles e às tantas mulheres que me habitam — mães, filhas, meninas perdidas no escuro, mulheres que voltaram do fundo do poço com os olhos cheios de água. Aqui, na sombra improvisada do lençol, há paz. E quando saio para o mundo, deixo um fio invisível dessa cabana atado ao meu pulso, como quem leva um amuleto. Porque se lá fora há guerra, dentro do peito uma cabana sempre me espera.